DEMÉTER: MÃE DE TODOS NÓS





 

Na Grécia antiga, Deméter tinha a função de presidir  sobre todas as formas de reprodução e renovação da  vida,  principalmente da vida vegetal. Situa-se entre os antigos cultos neolíticos da Grande Mãe  - na Suméria, na Ásia  Menor,no Egito e na ilha de Creta, entre aproximadamente  4.000 e 1.000 a.C.  - e da era cristã no Ocidente: ela é a deusa da fecundidade,da fertilidade e da regeneração; possui uma identidade mística com sua irmã sombria  do mundo avernal, a Rainha dos Mortos; dá à luz um Filho Divino, que permanece como seu jovem consorte em vez de transformar-se em marido ou alguém de igual maturidade
 
O santuário de Deméter  em Elêusis, onde seus mistérios eram celebrados, permaneceu ativo durante quase 2.000  anos. No ano 396 d.C., este que era o mais antigo e o maior centro religioso da Europa, foi destruído por Alarico, o Gordo. Em seguida, vieram os "homens de negro",  os monges cristãos. Todavia, uma  tal "Santa Demetra", não canonizada, sobreviveu  à supressão cristã, e é conhecida até hoje na região.
 
Outro vestígio da antiga consciência da Deusa-Mãe foi transmitido na devoção católica popular da Virgem Maria  entre os povos do Mediterrâneo. É quase certo  haver uma continuidade psíquica e cultural entre Maria e a deusa Deméter. Mas Maria parece carecer  do poder emocional  das antigas Mães da Terra e sua filhas.
VIRGEM MARIA
Como tudo o que é  cristão, a Virgem Santíssima foi vítima de um grave afastamento da  terra; seu título, Rainha dos Céus, indica que sua natureza divina era considerada espiritual num sentido "superior" e não terreno. Mesmo assim, estritamente falando , sua condição continuou a ser  a de uma mulher escolhida divinamente,  não a de uma deusa.

É difícil para nós hoje imaginarmos como seria haver uma deusa  e os mistérios  da terra no cerne da vida cultural e espiritual. Mais de dois mil anos de cultura judaico-cristã nos acostumaram a pensar em tudo que é divino como masculino, estando de alguma forma "lá em cima" no céu.
 O resultado é que nos acostumamos a pensar que a terra em que pisamos não é sagrada, que não é verdadeiramente a nossa mãe, e não é como  um local onde habitam deuses e deusas.
 
O MITO DE DEMÉTER
Enquanto  colhia flores com suas outras irmãs donzelas, filhas do Oceano,  Coré  (Perséfone), filha de Deméter, é  raptada por Hades, deus do mundo avernal,e levada para o além-túmulo.
 
 Durante nove dias, chorando inconsolavelmente, Deméter vaga pela terra,mas nem deuses nem homens ousam contar-lhe  o paradeiro de sua filha. Finalmente, Hélios, o que vê tudo,  explica a ela que foi Zeus quem conspirou com seu irmão Hades para permitir que o senhor das trevas se casasse com a virgem.
Em sua dor e revolta contra Zeus, Deméter abandona o Olimpo e esconde-se entre os humanos disfarçada de anciã.Envia uma terrível seca sobre a terra, ameaçando a própria existência da humanidade.
 
 Vendo a situação, Zeus persuade Hades a fazer um  acordo: Coré passaria com ele, no mundo avernal, um terço do ano, e  os restantes ficaria com sua mãe, Deméter e os outros deuses do Olimpo. Assim sendo, a terra floriu outra vez, terminando a terrível seca.
 
DEMÉTER MODERNA
É difícil confundir Deméter. Ela é aquela rodeada de crianças; os bebês se agarram a ela naturalmente; aquela que faz  e distribui pão com manteiga, café com leite e bolo de fubá. Aquela com reservas aparentemente inesgotáveis de energia.
 
A mulher-Deméter é a mulher mãe. Mas é mais que uma mãe biólogica, uma vez que ter filhos não é o que faz uma verdadeira mãe. O amor de Deméter é uma forma de  acalento, ela é totalmente generosa e dedicada,  dá o que  é conhecido como carinho de mãe.
As outras deusas podem ser mães, naturalmente, e o são, mas  que queremos dizer é  que para Deméter  ser mãe é o princípio norteador de sua vida: ela é o próprio e tem o poder do arquétipo da Mãe.
 
Porém, convém lembrar  que o  mundo de Deméter é antes de tudo  um mundo de uma criança, não de um adulto. A sua sintonia é com o mundo pré-verbal e pré-egóico dos filhos, ou seja, com suas necessidades físicas e emocionais, não com o seu desenvolvimento intelectual. A realização de Deméter está em maravilhar-se com os filhos - nos quais vive, se move e justifica sua existência. Sua maior satisfação é ver  os lindos filhos criados e transformados em jovens adultos felizes.
A CHAGA DE DEMÉTER
Mas Deméter está hoje  ferida: conseguimos reduzir a mãe hoje à uma máquina biológica  de reprodução , apenas tolerada numa sociedade industrializada e patriarcal , alienada dos ciclos maiores   da terra e dos ciclos menores da mulher.
 
 O importante é apenas o poder e a riqueza. A mãe  foi  retirada da comunidade e do ambiente de trabalho e confinada numa abstração sentimental chamada família. As mães e suas proles tendem a serem as últimas prioridades de qualquer planejamento econômico ou social.
Incapaz de articular essas coisas, a mulher-Deméter, que adora apenas criar os filhos, acaba sendo sentimentalizada , tratada com condescendência e destituída de poder até por suas irmãs feministas, cuja postura intelectual é a de Atena.
Os planos que são feitos para devolver as mães  de volta à força de trabalho e torná-las econômicamente independentes dos homens  são concepções de Atena,  e deixam a mulher-Deméter sentindo-se traída e aproveitada.
 
 

SEMPRE DONZELA E SEMPRE MÃE
O trecho abaixo é o relato completo de uma nobre mulher da Abissínia registrada pelo etnólogo alemão Leo Frobenius e citado por Carl Kerenyi em seu famoso ensaio "Kore".



"Como pode um homem saber o que é a vida de uma mulher?A vida da mulher é muito diferente que a do homem. Deus ordenou que fosse assim.O homem é o mesmo desde o momento de sua circuncisão até o fim de seus dias. Ele é o mesmo antes de ter conhecido uma mulher pela primeira vez, e depois. Mas o dia em que a mulher goza o seu primeiro amor divide-a em dois. Ela se torna uma outra mulher nesse dia.O homem é o mesmo depois de seu primeiro amor, como era antes.A mulher é, a partir do dia do seu primeiro amor, outra. Isso continua para o resto da vida.O homem passa uma noite com uma mulher e vai embora. Sua vida e seu corpo são sempre os mesmos.A mulher concebe. Como mãe, é uma outra pessoa que a mulher sem filhos. Ela traz consigo o fruto da noite por nove meses no corpo. Algo brota em sua vida que jamais a deixará. Ela é mãe. Ela é e permanecerá mãe mesmo que seu filho morra, mesmo que todos os seus filhos morram. Pois em um momento ela carregou um filho sob o seu coração. E jamais volta a deixar o seu coração. Nem mesmo quando está morto. Nada disso um homem conhece; ele nada conhece. Ele não sabe a diferença entre o antes do e o depois do amor, antes da maternidade e depois da maternidade. Ele nada pode saber. Somente uma mulher pode saber e falar disso. É por isso que não aceitamos que nossos maridos nos digam o que fazer. A mulher só pode fazer uma coisa. Ela pode se respeitar. Ela pode se manter decente. Ela deve ser sempre como a sua natureza é. Ela deve ser sempre donzela e sempre mãe. Antes de cada amor ela é donzela, depois de todo amor ela é mãe. Nisso se pode ver se ela é uma boa mulher ou não".